A última notícia


A última notícia que tive de mim foi de você 
Que me disse que eu havia me perdido 
E que achava que eu não podia ir tão longe
Mas fui
E me perdi
Você disse que eu já não era mais a mesma.

"Como você me deixou eu me perder?!", gritei indignada.
"Você se perdeu sozinha, foi impossível mantê-la aqui. Você sabia que era um caminho sem volta", retrucou.

Hoje sou uma gigante que vive numa velha mansão de janelas azuis del-rey feitas de madeira de lei
Uma gigante que só sai do quarto para aterrorizar os novos moradores 
Eles se assustam comigo

Sou eu quem testa as montanhas-russas dos meus sonhos
Elas estão quebradas 
Mas não caio
E sinto frio na barriga 

Posso ser um bebê que, depois de acidentado, vai a um hospital
Mas ninguém liga para meus machucados

Sou aquela que eu nunca queria ter sido
Sou mais fera do que bela.

Camila Oleski

O poema feio

Tentei buscar por palavras para uma tradução fiel do que sinto nesse momento
Mas o que achei foram silabas que, quem sabe, unidas podem até formar uma oração.
É inútil buscar explicação

À noite a dor aumenta
Deitada na cama,
Só com o pensamento gritando fatos
É uma tortura
Fico tentando tirar os nós
Eles são apertados
Até quando?

Eu sou a presa que,
No último nanossegundo antes de receber a fincada dos dentes do algoz na jugular, desiste e se entrega.
(É isso que se vê nos meus olhos de quem morre?)

Vou deixar o rio levar toda a minha mágoa
Lavar meus cabelos que deixei crescer com o meu amor
Lavar minha dor
E quem sabe meu bem querer

Até quando vai fugir de mim?
Até quando privar-me-á da verdade?
As letras saem doloridas e turvas pelas lágrimas

Nada disso traduz a verdade de um coração traído
Nada
Achei lágrima,  dor e tristeza

Quando olho, é feio.
O poema feio
Esse será o nome.

O molde


Pierre era um artista plástico renomado por esculpir manequins perfeitos. Foi durante uma exposição de pinturas de estilo renascentista que conheceu Caliandra. Ele queria ter novas ideias e inspirações para seu trabalho, e ela era apenas visitante. Pierre a convidou para fazer seu molde, para ser seu manequim, “Seu corpo é simplesmente perfeito!”, bajulou. Ela aceitou e nunca mais foi vista.

No mês seguinte, Pierre iria fazer uma enorme exposição que levaria seu próprio nome e todos os seus trabalhos: a verdadeira expressão da sua arte. Foi um grande alvoroço.

O formato do seu corpo era perfeito, uma escultura semelhante à do “Escravo moribundo”, de Michelangelo. Sua expressão de medo e angústia mobilizou o público. Para todos, ficou claro que se tratava de uma exposição póstuma.

De longe, ela, a “ghost writer” por trás da obra, observava satisfeita. O assassino sempre retorna à cena do crime, é o que todos dizem.

Camila Oleski

A poça

Raul era um homem de quase trinta anos que gostava de aventuras. Já havia saltado de paraquedas inúmeras vezes, mergulhado com tubarões, voado de balão, escalado o Kilimanjaro. Outra coisa que gostava de fazer era andar de moto correndo pelas estradinhas mal capeadas e de terra. Gostava de sentir o ar puro invadindo seus pulmões sem que precisasse respirar.
Numa tarde, corria com sua moto numa estrada vicinal. Chovia muito. Viu um alagado que formava uma poça imensa. Decidiu passar pelo meio, já que não havia outro espaço na estrada. Foi bem pelo meio, de modo que espirrou os jatos de água suja barrenta para os lados.
Lá pelo meio da pequena lagoa, sentiu-se sem chão. Mas seu estranhamento diante dessa nova sensação não foi suficiente para tirá-lo daquela situação. Afundou. Sua moto e seu corpo iam ficando submersos num cerco de água. Raul viu seu corpo indo cada vez mais fundo na poça que tinha infinitos metros de profundidade. Estava completamente atônito com o que estava acontecendo.
Depois de tanto afundar sem achar o chão, percebeu que não havia outra escapatória a não ser nadar. Deu grandes braçadas até cansar. Nadou mais e cansou. Queria ver o fim daquele labirinto de águas e, claro, queria se salvar. Continuou. Foi apenas depois horas nadando que conseguiu sair. Já completamente exaurido. Sua moto havia se perdido no fundo da maldita poça. Raul chegou ao oceano e viu a praia. Quase desmaiando, chegou até ela.

Camila Oleski

Poema do não-dito

A fala transforma quando cala,
Quando vem do silêncio.
A fala que nunca tinha sido dita
É a concretude do sentimento.
Procuro romper silêncios:
A batalha sórdida por algo que faça sentido.

Atravesso a escuridão do inaudível.
Meto-me nesta trilha obscura, fatigante e longa.
É uma floresta escura, cujos barulhos desconhecidos ganham em meus sonhos a força de um dragão.
Olho ao redor e acho densa a vegetação.
Quero achar um enunciado para meu não-dito,
Mas aquele dragão ateia fogo em minhas costas e as fazem fritar.
Apesar da dor, acostumo-me...
Devaneios tomam conta dos meus pensamentos mais racionais como se minha cabeça buscasse por saídas menos doloridas para traduzir a realidade.


Eu sou a flor com espinhos e a floresta é a minha casa.

Labirinto Obsceno

  Estava praticamente impossível achar a saída daquele labirinto escuro, insólito e obsceno. Vi-me desnorteado e sem escapatória. Minhas mãos tateavam em volta na tentativa de traçar um caminho em meio ao emaranhado. Minha boca, aberta, tentava buscar ar sem sucesso num abismo hermeticamente entrelaçado. Resfoleguei. Quase sufoquei. 
  Finalmente vi uma luz e corri até ela. Senti um alento imenso. Até que enfim achei a saída. Com as mãos, joguei para o lado os tufos de cabelo dela. Respirei como num reflexo de quem acabou de passar por uma experiência de quase morte. Senti sua fragrância que me fez lembrar o motivo de eu estar ali. Achei o seu pescoço. Comecei a beijá-lo com volúpia. Os corpos se entrelaçaram, os suores e salivas se misturaram. Por fim, ouvi o gemido da sua voz. Agora um pouco mais agudo e estridente. Em seguida veio o meu um tanto tímido e moribundo.


  No dia seguinte, a manchete que chamava atenção da população no caderno policial do jornal local dizia: “Jovem morre asfixiado no cabelo da amante.”

Camila Oleski

A tosse

A tosse piorava a cada dia. Inicialmente era leve, uma coceirinha na garganta apenas. Surgiu depois de uma noite fria de inverno. Tinha tido uma discussão política com seus amigos. Estava incrédula, porque a população não se unia diante da reforma da previdência e trabalhista que o governo estava prestes a implementar com sucesso, já que estava sendo apoiado pela maioria do congresso. Foi uma noite intensa, falou muito e espinoteou.

Depois disso passou a uma tosse seca que, quando vinha, tinha que despejar para fora. As noites de inverno em São Paulo estavam frias como de costume. Da boca saía aquela neblina quando se falava. Era uma nuvem leve, carregada de água e coceira.

Trabalhava na redação de um jornal renomado da Capital. Para a próxima coluna estava elaborando um texto sobre a agilidade com que o governo conseguiu apoio dos deputados para as reformas descabidas que queria aprovar em menos de um ano de gestão. Seu editor havia lhe falado para ter cautela a respeito das palavras grosseiras que usava. Não era novidade que o jornal apoiava o golpe para a queda da presidenta.

“Cautela?”, pensou ela revoltada. O jornal estava tentando limitar também o trabalho dos colunistas. A tosse veio como uma onda revoltada que quebra ainda longe da segurança da praia. Ela estava em frente ao editor, que falava sobre seu texto impertinente. Tossiu de leve para não atrapalhar a fala do homem. Ele fez um silêncio contundido. Ela olhou para ele e viu sua careta. A próxima onda de tosse veio, e como viu que não conseguia segurar, tossiu como se não houvesse amanhã e também com o intuito de atrapalhar a fala dele apenas uma vez. Deu um suspiro profundo, preparando-se para dar cabo daquela coceira com mais eficiência. Soltou uma, duas e, finalmente, três tossidas grandes. Estava fora de si, pois aquela sua tosse convulsiva a obrigava a voltar a atenção a si mesma com o intuito de contê-la. Quando retornou ao editor, ele estava visivelmente pálido com a mão na barriga. Sua camisa e gravata estavam desarrumadas como se tivesse passado um tufão dentro da redação, mas atingindo somente ele. Seu editor berrou que ela fosse embora, mas fez isso quase sem fala, já que as pancadas haviam sido muito, mas muito doloridas. Ela se retirou sabendo que havia descarregado aquela tosse no pobre, mesmo sem ter a intenção de agredi-lo.

Durante a caminhada para casa, naquela noite fria, Tassiana lembrava-se das determinações feitas pelo seu editor. Tossia muito, e, com isso, aproveitava para aumentar a grande população de animais peçonhentos e nojentos da terra. Aranhas, ratos, cobras, sapos e baratas saiam da sua tosse quanto mais se lembrava da discussão com aquele homem cuja justiça não fazia parte do seu vocabulário. Queria esquecer o que tinha acontecido. “Preciso relaxar, essa tosse está se tornando insuportável”, sofreu ela. São Paulo estava congelante, então os animais nascidos da tosse logo corriam para procurar refúgio nos cantos e no esgoto da sujeira da Praça da República.

O médico estava marcado para o dia seguinte, e Tassiana desejava muito se libertar daquela enfermidade devastadora. A noite foi terrível, os sintomas apareciam quanto mais pensava nas aflições daquele dia.

A médica era uma senhora. Olhava para Tassiana com aquela sabedoria desconfiada, após a doente relatar seus sintomas. “Ontem tossi socos no estômago do meu chefe! Fiquei chocada, doutora. Por favor, me ajude!”. Era um atendimento de encaixe. Tassiana havia aguardado bastante na sala de espera e estava aflita para descobrir qual remédio ia curá-la. Parecia que o tempo nunca passava e aquela anciã não tinha aberto o bico para dar nenhuma pista a respeito do diagnóstico. Tassiana tossia lesmas no consultório, lesmas e tartarugas. Tinha ficado abismada com a sua capacidade de expectorar um casco tão duro de tartaruga. Dra Dolores tinha lhe agraciado com um balde para que ela expectorasse os animais.

“Hum...”, disse a doutora. “Você teve contato com alguma pessoa doente? Alguém que parecia estar fraca e triste?”.

“Doutora Dolores, sou jornalista e, portanto, entrevisto muitas pessoas para meu trabalho, várias delas, muito tristes e doentes, pessoas que não têm acesso a hospital e médico de qualidade. Mulheres espancadas pelo marido, pessoas desabrigadas pelas enchentes, crianças molestadas sexualmente. Não sei dizer qual delas não estava doente. O mundo está doente! Ultimamente ando fazendo reportagens sobre política, tenho tido contato com vários políticos.”, reclamou a enferma.

“Bem...”, revelou a doutora, “Tassiana, o que você tem chama-se Engole Sapo”, dizendo em seguida o nome científico quase impronunciável e do qual a moça esqueceu logo em seguida. Dolores diagnosticou com muita sabedoria: “É uma doença que acaba transbordando, literalmente, os sapos engolidos. É psicossomática.” Tassiana estava indignada, embasbacada, coitada. Afinal, como ela iria trabalhar naquele estado? “Na verdade, existe uma erva para infusão indicada para tratar desse mal, o Amansa Senhor. Ele serve para a afecções bucais e bronquite, impedindo assim que os bichos saiam, digamos assim...”, e abriu um sorrisinho meio sem graça, com o qual Tassiana não compactuou.


De volta em casa, Tassiana ficou dias ainda soltando os bichos e tomando o chá. A tosse vinha e com ela os bichos e reações mais grotescos. Aquele tempo fez com que ela pensasse nas razões do seu corpo. Refletiu sobre a forma como lida com o que as pessoas falam para ela. As pessoas têm seus demônios, constroem fantasias, criam histórias e formas de agir para preencher algumas informações que têm a ver, em grande parte, com aquilo que são. A verdade por trás da vida representava um mistério para ela. Pessoas vendem a alma e prejudicam toda uma população para receber benefícios financeiros. Sim! Aquilo era o sapo que ela estaria engolindo. Naqueles dias, percebeu que a natureza da vida não é permanente e sim fluida, mesmo que isso pareça nojento. Tassiana finalmente descobriu de onde vinha o sapo. 

Camila Oleski

A última notícia

A última notícia que tive de mim foi de você  Que me disse que eu havia me perdido  E que achava que eu não podia ir tão longe Mas fui ...