A tosse

A tosse piorava a cada dia. Inicialmente era leve, uma coceirinha na garganta apenas. Surgiu depois de uma noite fria de inverno. Tinha tido uma discussão política com seus amigos. Estava incrédula, porque a população não se unia diante da reforma da previdência e trabalhista que o governo estava prestes a implementar com sucesso, já que estava sendo apoiado pela maioria do congresso. Foi uma noite intensa, falou muito e espinoteou.

Depois disso passou a uma tosse seca que, quando vinha, tinha que despejar para fora. As noites de inverno em São Paulo estavam frias como de costume. Da boca saía aquela neblina quando se falava. Era uma nuvem leve, carregada de água e coceira.

Trabalhava na redação de um jornal renomado da Capital. Para a próxima coluna estava elaborando um texto sobre a agilidade com que o governo conseguiu apoio dos deputados para as reformas descabidas que queria aprovar em menos de um ano de gestão. Seu editor havia lhe falado para ter cautela a respeito das palavras grosseiras que usava. Não era novidade que o jornal apoiava o golpe para a queda da presidenta.

“Cautela?”, pensou ela revoltada. O jornal estava tentando limitar também o trabalho dos colunistas. A tosse veio como uma onda revoltada que quebra ainda longe da segurança da praia. Ela estava em frente ao editor, que falava sobre seu texto impertinente. Tossiu de leve para não atrapalhar a fala do homem. Ele fez um silêncio contundido. Ela olhou para ele e viu sua careta. A próxima onda de tosse veio, e como viu que não conseguia segurar, tossiu como se não houvesse amanhã e também com o intuito de atrapalhar a fala dele apenas uma vez. Deu um suspiro profundo, preparando-se para dar cabo daquela coceira com mais eficiência. Soltou uma, duas e, finalmente, três tossidas grandes. Estava fora de si, pois aquela sua tosse convulsiva a obrigava a voltar a atenção a si mesma com o intuito de contê-la. Quando retornou ao editor, ele estava visivelmente pálido com a mão na barriga. Sua camisa e gravata estavam desarrumadas como se tivesse passado um tufão dentro da redação, mas atingindo somente ele. Seu editor berrou que ela fosse embora, mas fez isso quase sem fala, já que as pancadas haviam sido muito, mas muito doloridas. Ela se retirou sabendo que havia descarregado aquela tosse no pobre, mesmo sem ter a intenção de agredi-lo.

Durante a caminhada para casa, naquela noite fria, Tassiana lembrava-se das determinações feitas pelo seu editor. Tossia muito, e, com isso, aproveitava para aumentar a grande população de animais peçonhentos e nojentos da terra. Aranhas, ratos, cobras, sapos e baratas saiam da sua tosse quanto mais se lembrava da discussão com aquele homem cuja justiça não fazia parte do seu vocabulário. Queria esquecer o que tinha acontecido. “Preciso relaxar, essa tosse está se tornando insuportável”, sofreu ela. São Paulo estava congelante, então os animais nascidos da tosse logo corriam para procurar refúgio nos cantos e no esgoto da sujeira da Praça da República.

O médico estava marcado para o dia seguinte, e Tassiana desejava muito se libertar daquela enfermidade devastadora. A noite foi terrível, os sintomas apareciam quanto mais pensava nas aflições daquele dia.

A médica era uma senhora. Olhava para Tassiana com aquela sabedoria desconfiada, após a doente relatar seus sintomas. “Ontem tossi socos no estômago do meu chefe! Fiquei chocada, doutora. Por favor, me ajude!”. Era um atendimento de encaixe. Tassiana havia aguardado bastante na sala de espera e estava aflita para descobrir qual remédio ia curá-la. Parecia que o tempo nunca passava e aquela anciã não tinha aberto o bico para dar nenhuma pista a respeito do diagnóstico. Tassiana tossia lesmas no consultório, lesmas e tartarugas. Tinha ficado abismada com a sua capacidade de expectorar um casco tão duro de tartaruga. Dra Dolores tinha lhe agraciado com um balde para que ela expectorasse os animais.

“Hum...”, disse a doutora. “Você teve contato com alguma pessoa doente? Alguém que parecia estar fraca e triste?”.

“Doutora Dolores, sou jornalista e, portanto, entrevisto muitas pessoas para meu trabalho, várias delas, muito tristes e doentes, pessoas que não têm acesso a hospital e médico de qualidade. Mulheres espancadas pelo marido, pessoas desabrigadas pelas enchentes, crianças molestadas sexualmente. Não sei dizer qual delas não estava doente. O mundo está doente! Ultimamente ando fazendo reportagens sobre política, tenho tido contato com vários políticos.”, reclamou a enferma.

“Bem...”, revelou a doutora, “Tassiana, o que você tem chama-se Engole Sapo”, dizendo em seguida o nome científico quase impronunciável e do qual a moça esqueceu logo em seguida. Dolores diagnosticou com muita sabedoria: “É uma doença que acaba transbordando, literalmente, os sapos engolidos. É psicossomática.” Tassiana estava indignada, embasbacada, coitada. Afinal, como ela iria trabalhar naquele estado? “Na verdade, existe uma erva para infusão indicada para tratar desse mal, o Amansa Senhor. Ele serve para a afecções bucais e bronquite, impedindo assim que os bichos saiam, digamos assim...”, e abriu um sorrisinho meio sem graça, com o qual Tassiana não compactuou.


De volta em casa, Tassiana ficou dias ainda soltando os bichos e tomando o chá. A tosse vinha e com ela os bichos e reações mais grotescos. Aquele tempo fez com que ela pensasse nas razões do seu corpo. Refletiu sobre a forma como lida com o que as pessoas falam para ela. As pessoas têm seus demônios, constroem fantasias, criam histórias e formas de agir para preencher algumas informações que têm a ver, em grande parte, com aquilo que são. A verdade por trás da vida representava um mistério para ela. Pessoas vendem a alma e prejudicam toda uma população para receber benefícios financeiros. Sim! Aquilo era o sapo que ela estaria engolindo. Naqueles dias, percebeu que a natureza da vida não é permanente e sim fluida, mesmo que isso pareça nojento. Tassiana finalmente descobriu de onde vinha o sapo. 

Camila Oleski

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